terça-feira, 16 de dezembro de 2014

essa caixa que é



Talvez o que me faltasse fosse desenhar com a marca d’água que o suor do copo formava na mesa. Faltou colorir com os batons borrados e sorrisos amarelos. Faltou buscar qualquer coisa de mais natural nos perfumes já transpirantes.
Era uma caixa, uma caixa cinza e com um ar condicionado desproporcional, e estava cheia de um vazio latente e sutilmente ignorável pela falta de espaço físico no lugar. Corpos, tentando dizer qualquer coisa que ninguém sabia bem o que. Corpos buscando outros corpos para sentir a repulsa diária do contato com o outro. E daí que aquilo tudo parecia um disco riscado, ainda que em sua gênese fosse uma música agradável. Os mesmos versos, de novo e de novo e de novo, e ninguém nem se dava conta de estar repetindo os mesmos versos, de novo e de novo e de novo.

E de novo
Faltou saber criar a partir daquelas mesmas velhas e cansadas coisas. Faltou um pouco de estar dentro naquele estar fora.
Faltou entrega. Sempre falta entrega. Não dá tempo. Não dá força. Dá medo. Amanhã já acaba tudo isso. E daí...

Tem algo de aconchegante em se meter nas caixas, aquela segurança de “mesmo sabendo que vai dar errado, que vai faltar, eu pelo menos conheço isso tudo e não preciso temer o desconhecido”.
Qualquer shopping center do mundo deve corresponder minimamente às nossas expectativas; qualquer garrafa; qualquer aeroporto; qualquer motel; qualquer fetiche.

Saímos um pouco para respirar, e é tão difícil respirar. É como se tivéssemos acabado de nascer, toda santa vez, e toda vez enche o peito a vontade de chorar.
Mas esse chorar de percepção da vida, de vinda, não deveria causar angustia... Assustador cada renascer, o reencontro com todas as possibilidades e nenhuma. Mas é vida.

E então que toda fênix tem algo de suicida, algo de saber partir e encarar a queimação do primeiro sopro de vida, de novo e de novo e de novo. Eternamente vão soar os seus lamentos de morte, eternamente vão raiar novas chamas. Mas é preciso sair da caixa. 

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

A única coisa que faz sentido nesse lugar são as pombas no telhado




Às vezes me pergunto por que é mesmo que não gosto dessa cidade... Parque da Luz, 16h30; Ibirapuera, 10h: a incidência do sol e o canto dos pássaros me fazem sentir outra pessoa, deslocada para um lugar melhor, para algum canto aconchegante de memória ou ideal.

Mais um dia de trabalho, respiro fundo, menos um dia de trabalho. Cinco minutos de passeio no Parque da Luz, por que não faço isso todo dia? Olha o moço lendo livro na mesa de pedra, com o lago de fundo. Olha os senhores que tocam moda de viola. Olha as mulheres rotineiramente sentadas nos bancos ou apoiadas em árvores, esperando por um dia a menos de trabalho...

O crepitar das folhas no chão, as esculturas distribuídas pela grama, uma brisa leve que às vezes São Paulo se esquece de soprar... Minhas alpargatas pretas aos poucos vão se desbotando, ficando marrons, enchendo-se de terra. Isso é vida. A vida inteira vale a pena por esses 5 minutos no parque.

No saguão da estação alguém toca uma fuga no piano. Ah, Luz, e suas adoráveis surpresas!

Eu quero mesmo é ir embora de São Paulo, pra me lembrar com carinho desses minutos, parcas horas, tão maiores que a vida-moribunda alimentada por inércia apática. E um dia voltar e tocar Eric Satie nesse piano, para os passantes e trabalhadores lembrarem-se da brisa leve e sol morno que ainda há.


Alguma coisa tem que valer a pena.



quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Acho que é



Há uma tristeza dentro de mim
e eu não sei o que fazer com ela.
Tem uma tristezinha dentro,
e eu sei que ela não me pertence.
É como aquele cravo
que nós apertamos com insistência
e ele simplesmente não sai,
e você esquece e passa,
mas  de quando em quando
você lembra que ele está lá.
Uma tristeza de como se eu tivesse
noventa anos de idade
e estivesse a pelo menos
dez mil quilômetros
da minha cidade natal.
Ou aquela tristeza incômoda
de ter perdido alguma coisa
que já nem lembro mais o quê.

E ela vem assim,
maior com nona
seguida da dominante
(com sétima menor).
Eu toco violão
eu toco flauta
eu canto e lamento e lamento
e nenhuma frequência
põe essa tristeza em movimento.

Eu queria saber de quem ela é,
quem foi que deixou ela aqui.
Porque ela não é minha
e não tô em condições
de cultivar tristeza alheia.

Amigos!
Estou doando uma tristeza!
Quem souber desincrustá-la
desse não sei bem onde aqui dentro,
leva a tristeza,
e uma serenata!

É que tenho sono
e muita preguiça
de tentar entender.
Mas não parece nada cabeludo,
minha gente,
é só dessas coisas que às vezes
a gente sente.

Sabe que,
olhando bem no fundo dos olhos
ela não é tristeza não.
Pode que seja só uma tarde de domingo,
ou uma pança bem cheia,
ou o final de um bom livro,
ou a despedida de um amor no terminal de ônibus.
Pode ser que seja só
a ressaca do ontem
precedendo o frio na barriga do amanhã.

Acho que é meu mesmo.

domingo, 3 de agosto de 2014

Apaixonar-se



Ventava fresco, 26°C num dia de inverno, céu azul, tempo ameno, dia de uma serenidade que nunca uma cidade grande como aquela podia oferecer. Ela balançava na rede, atenta somente ao movimento de ir e vir e à música que aquele dia compunha na sua cabeça.
Um frio na barriga. Lembrou-se do caminho para a casa de sua avó, e de como em sua infância aguardava com emoção os momentos em que o carro passava por descidas, provocando frio na barriga.
Borboletas no estômago... Toda uma sensação macia e quente de um carinho interno que subia desde a barriga até o pescoço, envolvendo, desnorteando, chegando ao rosto no tom avermelhado, como se de repente a coisa toda virasse timidez.
A serenidade e a sensação de cosquinhas não vinham do balanço da rede, nem da energia externa. Era paixão. Era um amar adolescente que ela acreditou que tinha morrido depois de tanta vida trilhada.
Mas da onde vinha? – era óbvio que nascia ali, num ponto logo abaixo do umbigo – Mas de quem vinha? Tão cheia de vida andava a vida, tão cheia de gente, de lugar, de espírito, de som. Da onde exatamente vinha?
Parecia que a resposta a essa pergunta traria algo como uma resolução de problemas; distinguir no meio daquele bolo todo a fonte das borboletas coloridas e musicais seria o achado da vida.
A rede parou de balançar. Começou a escurecer. Toda sua banda interna parou de tocar tantas músicas de tarde de sol e um coro de vozes entoou um motete com textura e movimento de chama de vela.
Atenta ao centro daquela chama ela percebeu.
Que besteira procurar a fonte dessa paixão. Que besteira desfazer o emaranhado de acontecimentos, como alguém que desmonta um instrumento musical buscando a origem da música, desfia as cordas à procura dos harmônicos.
Apaixonante era a própria vida, arrebatadoramente apaixonante, assim, inteira e complexa.


sexta-feira, 4 de julho de 2014

The door of perceptions

Mais de um ano entre aquarelas, viagens, poesia e música, a porta agora conta sua história sem lacunas nas molduras. Cada fragmento carrega um punhado de memórias, vontades e energia, e abre espaço pra poesia que os amigos trazem.





  







sexta-feira, 13 de junho de 2014

De quando somos o suporte da arte



Tem dias que a buena onda está em cada camada do corpo e em cada dimensão que nos envolve. O dia que fiz minhas tatuagens foi assim, todo especial. Ter como realizador das marcas o querido Fernando Diz, em presença da companheira-de-todas-as-horas e fotógrafa-dos-bons-momentos (o uso do hífen não caiu na minha vida) Babi, ao som de Beatles e Queen, foi mais harmônico do que eu jamais pude imaginar que uma experiência dessas pudesse ser. 

 
A simbiose com o Diz foi forte, e a sensação de ter traçado na pele aquelas imagens que  por tanto tempo estudei, cultivei, incorporei, foi a de ruptura e renovação.
O dia não foi à toa: 3 de maio é para alguns pueblos andinos dia da chacana, porque o Cruzeiro do Sul (inspirador da cruz andina) fica numa vertical perfeita em relação ao polo sul.

 

Essa imagem com a flor colorida que remete à wiphala eu peguei do III Festival Cultural de Carnaval Andino Yunza 2014, que aconteceu dia 5 de abril na Praça Ulisses Guimarães.


A palavra em forma de anel, escrita com as tengwar, do Tolkien, é uma ideia que venho ruminando desde os 12, 13 anos, quando li O Senhor dos Anéis.
[O que tá escrito deixo em suspenso, pra não perder a possibilidade de piada quando me perguntarem.]

Ainda tô naquela fase grudenta de olhar apaixonada e cuidar com todo o carinho delas. Além do significado mais intrínseco de cada desenho, elas se tornaram também memória de um dia lindo com gente querida, e primeira experiência intensa de ter o corpo como suporte direto de uma forma de arte de efemeridade relativa (vai durar enquanto eu, suporte, viver).

Mas o melhor de tudo, e motivo d'eu ter escrito um raro relato autobiográfico aqui, foi que o registro fotográfico da querida Babi (que por sinal publicou coisa muito bonita sobre nossa ida ao Inhotim) foi publicado na Revista Capitolina! Fica pra quem quiser ver um pouco do meu dia 3 de maio de 2014, do trabalho do Diz e da Bárbara, e da Capitolina, que eu recomendo que cês fucem com carinho, que tá bonita demais.