O chão está coberto por um espelho d’água. Nada o perturba,
a não ser uma leve garoa dentro de mim, eventual, que busca manter aquele
espelho de cor e luz.
Nesse espaço amplo não se vê nada, nem montanhas ao fundo,
só o largo espelho. Nele estão belamente refletidas formas brancas, azuis de
tons claros, com leves linhas lilases. Não há cheiros, não há sons, não faz
frio nem calor. É o reflexo da paz.
De quando em quando uma suave brisa dança no espaço,
trazendo a mensagem de lugares distantes. Música, sabor, cores vivas. Sopros
livres de felicidade.
De repente me percebo nesse espaço. Até então, a paz
imperturbável e a tranquila beleza me distraíam de mim; eu era o mundo, nada
mais. Aquele sopro de felicidade trouxe uma perturbação, uma pequena onda no
límpido reflexo. Senti-me, busquei-me. Ali estava, no espaço, feita de garoa,
refletindo aquelas cores pastéis.
Pequenas ondas se formaram em meu corpo, resultantes do
movimento da percepção e busca de mim. Reflexo turvo da paz.
Olho para o espaço. Já não o sinto, agora sou uma observadora.
As cores continuam lá, intactas. Amorfas. São um reflexo.
De quê? A
inquietação em mim cresce: sou o turvo reflexo de um reflexo. Busco a origem,
busco uma forma definida. É difícil dizer onde começa o céu: ele é inferível,
sem muita certeza, ali na dobra, no vértice das simetrias. Que vértice? Um olhar mais atento mostra o espaço todo como um
caleidoscópio multidimensional, uma sala de espelhos, de ângulos obtusos que
formam o que parece ser uma esfera.
Onde está a paz?
Outra brisa, leve brisa... Cheiro de flores, som de risadas,
um calor afável, aconchegante.
De onde vem a
felicidade?
Lufada forte de vento. Meu guarda-chuva vira ao contrário,
minha pasta cai, lama e água molham minha calça em simultaneidade com o carro
apressado que levanta uma onda impiedosa que se lança com vontade em mim. Por
um milésimo de segundo todas as perguntas do mundo
Onde estou? Quem sou eu? O que é isso? De
onde vim? Para onde estou indo? O que tenho que fazer? O que está acontecendo? Como faço para
me mover? Que sensação é esse em meu corpo? Olha, mas eu
tenho um corpo?! O quê? Quem? Como? Quando? Q...?
O resto do segundo é puro espanto.
E depois disso, a triste constatação de que estou encharcada
e atrasada para o trabalho.