sábado, 25 de dezembro de 2010

Conto

"Nem tudo nessa vida é poesia", ele me disse, com o cenho enrugado, a monocelha em V, a mão no ar como quem segura um cachimbo, o copo de água como se fosse de uísque. "Que merda", eu pensei. Ele tomou um longo gole de água, buscando os sabores dos minerais de sua fonte. Era difícil levá-lo a sério com aquela monocelha.
"A vida também é feita de prosa", e abriu um sorriso daqueles que abrem pessoas mais velhas quando contam uma piada que julgam ser genial. "Ah, sei... Bom, isso tudo é muito legal, mesmo, mas, ãh, por que estamos tendo essa conversa, Seu João?". Puta cara maluco, o síndico. Às vezes ele resolvia chamar a primeira pessoa distraída no saguão para uma conversa profunda e filosófica sobre algum tema que nunca entendíamos de onde surgia, nem exatamente sobre o que falava. Não que ele usasse palavras fora de contexto, nem que dissesse coisas sem sentido, mas nunca entendíamos o porquê da conversa, nem sabíamos acompanhar a trama de seu pensamento. "Bom, você escreve, não?". Eu.. hein? "Ah, sim, sim, escrevo sim. Mas não escrevo só poesia, escrevo prosa também. Já até tentei escrever uns folhetinzinhos lá, coisa de criança, não ficou bom, preciso fazer coisa nova...". Ele arqueou a metade esquerda da monocelha, olhando sério, como quem tenta enxergar tudo o que tem por trás de um olhar vago. Tragou o ar, profundamente, expirou, olhou para cima, com a mão no queixo coçando uma barba que ele não tinha. "Sei, sei... Então, eu queria que você e o Ricardo levassem meu neto para o mochilão de vocês". Ah, sim, claro, Quê?! Seu neto? Mas quem diabos é seu neto? A... "Oi?".
- Meu neto, queria que você e o Ricardo levassem o Gabriel para o mochilão com vocês.
O neto dele? Puts, sempre detestei Gabrieis, sempre me pareceu que Gabrieis e Vinicius são todos pestinhas, nunca chamaria um filho de Gabriel ou Vinicius... Não podia ser o neto, sei lá, o neto Tiago, o neto Henrique... Tinha que ser um Gabriel?
- Ahn, mas Seu João, a gente conhece esse neto? Quantos anos ele tem?
- Não conhecem não, ele vem pouco para cá, é do Sul, sabe. Ele tem 16 anos, acho uma boa idade para uma viagem dessas, se tiver uns responsáveis junto.
Sei... Vou ser responsável por um moleque de 16 anos, junto com meu namorado, no nosso mochilão pelo litoral. Eba! E como é que ele sabia que a gente ia fazer o mochilão, no fim das contas?
Devo ter ficado muito tempo em silêncio, porque ele disse:
- Para onde vocês vão?
- Ahn? Ah, vamos subir pelo litoral, até o norte. Vai ser uma viagem demorada, pelo menos dois meses, e vai ser tudo de ônibus ou a pé, pode ser bastante cansativa. Ele já fez algum mochilão, antes?
- O Gabriel? Ah, o Gabriel viaja muito, sim. Desde criança ele fala que quer conhecer o mundo todo, que sua profissão vai ser viajante, hehe - abriu aquele sorriso de quem lembra alguma cena solta na memória, provavelmente o neto com um chapéu laranja e óculos de natação, uma bússola na mão, algo assim.
Puta que pariu, como é que eu ia dizer não ao Seu João, ainda mais com aquele olhar de avô coruja que quer ajudar o neto a realizar seu sonho? Eu não podia fazer isso. Mas, passar dois meses com um rapaz que eu nem conheço, tendo ainda que me responsabilizar por ele? Caramba, o que eu faço?
- Bom, ok, vou falar com o Ricardo, ver o que ele acha... Ia ser bom poder conversar com o Gabriel antes, então, ver o que ele acha, se ele quer, se tem preparo... Tem algum jeito de eu entrar em contato com ele?
"Tem sim", e pegou um pedacinho de papel e anotou um telefone e os nomes Miriam e Gabriel, acima. "Miriam é a mãe dele, minha filha", e sorriu um baita sorrisão.
- Tá bem, então vou indo, depois te conto como ficou - e nos abraçamos daquele jeito meio aperto de mão, meio tapa nas costas, desajeitadamente.
No mesmo dia a noite conversei com o Ricardo. Ele achou a história toda incrivelmente engraçada, riu até cansar os músculos do rosto, e disse que eu devia escrever mais prosas. Ah, sim, disse também para levarmos o garoto.

Ligamos no dia seguinte para o número no papel. Foi uma mulher quem atendeu.
- Alô?
- Alô, Miriam?
- Isso, quem é? - disse com o jeito de quem tenta reconhecer uma voz.
-Oi, aqui é a Isadora, eu moro aqui no prédio do seu pai, o Seu João...
- Ah...
-... eu vou fazer uma viagem pelo litoral e ele sugeriu que eu levasse seu filho também - caramba, não fazia idéia de como formular a frase. Oi, seu pai, que periodicamente nos chama para conversas sem sentido, pediu que eu levasse seu filho para meu mochilão com meu namorado, após conversar sobre gêneros literários.
- Meu filho? - ela disse assustada - O Gabriel?
Fazia todo o sentido ela estar assustada, não nos conhecíamos, nunca nos falamos antes, eu nem ao menos sabia da existência do Gabriel... "Sim, o Gabriel. Eu não conheço vocês, mas o seu João falou de como ele quer ser um viajante e tudo mais, aí pensamos que poderíamos dar esse incentivo para ele e tal".
Ela não respondeu. Poxa, eu não sabia um jeito melhor de explicar, ou sei lá. Por que foi mesmo que eu resolvi ir em frente com essa história? Ficou um silêncio desconfortável, ouvi ela suspirar do outro lado da linha. "Miriam...?". Mais um suspiro, dessa vez mais alto.
- Oi, oi, estou aqui. Desculpe. - sua voz parecia embargada- Oi... Desculpe, como você chama, mesmo?
- Isadora.
- Ah, sim, então, Isadora... Meu pai sente muita falta do Gabriel, às vezes ele faz essas coisas.
Fiquei sem graça. "Magina, Miriam, eu entendo. Mas acho que ele faz isso porque gosta muito do neto, quer ajudar ele a realizar seu sonho, né".
- Sim, sem dúvidas. Sem dúvidas - eu definitivamente ouvi um soluço. E agora, o que faço? Fiquei quieta - Ahn, bom, muito obrigada pela disposição, mesmo, mas o Gabriel não vai poder ir... ele... ele sofreu um acidente quando tinha 10 anos, num ônibus de viagem, e, bom, ele morreu.
Meu Deus. Meu santo. Minha virgem. O que eu fiz? Eu liguei para uma mulher que o filho... chamei ele para viajar... e... ai merda. Caralho. O que eu digo? Que tristeza! "Eu, poxa, eu não, não fazia idéia, mesmo. Desculpa. Nossa. Meus pêsames, eu...". Parei. Eu bem sei que nada pior do que o tal do meus pêsames.
- Não, tudo bem. Não é a primeira vez que acontece. Acho que o Gabriel ainda vive em algum lugar na cabeça do meu pai, vive e até cresce, vai entrar numa faculdade... Não sei o que fazer. Nem sei se devo fazer algo, ele parece feliz vivendo com o Gabriel em seus pensamentos. Não sei... - continuei em silêncio, sem saber o que dizer - Bom, desculpe pelo incômodo, Isadora, e prazer em te conhecer, hein. Boa viagem...
- Eu que me desculpo, mesmo. Obrigada! Boa semana. Tchau!
- Tchau. - disse com voz triste e desligou. Boa Semana, de onde foi que eu tirei isso?

Puts. E agora, o que eu faço? Tá sobrando uma vaga para o mochilão...
Já sei! Vou levar o Seu João com a gente. Daí o Gabriel vai também.

4 comentários:

  1. Vivemos com memórias inexistentes e somos obrigados a aprender como administrá-las sem envolver aos outros... Gostei muito do texto!

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  2. Viu desculpe invadir a área, mas muito interessante sua escrita... gostei muito. E parafraseando seu amigo Caio, brilhante saída.
    Parabéns

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  3. indiscritivelkmente incrível... adorei vivian! continuo dizendo que tiro o chapéu pra vc :) abraço!

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