Eu nunca
soube muito bem como funciona essa história de reacender um velho amor. Até
porque, comigo a chama só apaga quando a vela acabou, e se a vela acabou não há
mais nada que se fazer (a não ser, de repente, reaproveitar a parafina para
fazer um desses enfeites feios de estante, meio natalinos, que acabam parando
numa gaveta escondida que adota a função de sepulcro de memórias que não
queremos esquecer, mas também não temos mais disposição de polir e cuidar).
Mas talvez
nesse caso a vela não tivesse apagado, só queimava de pavio curto e chama
fraca. Quando voltei, cheguei a pensar que seria impossível reacender uma
chama, teria que improvisar uns galhos, incenso e álcool para arder
desordenadamente enquanto elaborava meu plano de fuga. Felizmente não foi
assim.
Há certa
beleza melancólica nessa cidade que faz seu morador se revoltar, ter medo, ter
sempre pressa e sempre planos de partir, mas ao mesmo tempo criar umas raízes
que alimentam uma parte importante do espírito. Porque o Largo do Café, o
encontro da Avenida São João com a São Bento, a engraxateria, os bares, o
Anhangabaú são inegavelmente bonitos. Porque a Estação da Luz, principalmente
ali, nas passagens acima do trem, é lugar de descanso e encosto para todo tipo
de gente, assim como o Parque da Luz, e é bonito o jogo de cartas dos senhores
que se reúnem ali. Porque o povo daqui é desconfiado e carrancudo, te encaram
sem vergonha nenhuma, medem de baixo a alto; muitas vezes é medroso; é
trabalhador e não deixa espaços para vagabundos ou errantes; povo acolhedor dos
conhecidos e/ou importantes, metido em bares, festas fechadas, eventos
culturais; mas, justamente por isso tudo, fica tão bonito quando alguém esquece
a carranca ou a ironia e ri um riso sincero, meio infantil, quase impudico numa
cidade como São Paulo, e é altamente revigorante quando presenciamos um gesto
de bondade ou educação. É mais belo que um corpo se desnudando, essas pequenas
exibições da alma. E lá no fundo aqueles que têm coragem de cavocar encontram
um coração, com mais frequência do que se imagina.
A vida aqui
funciona assim: como tem medo, não tem espaços públicos (e abertos) de lazer,
não tem praça, não tem banquinho e mesa, não pode sentar na grama, não pode
sentar no chão, quase não tem parque, os poucos lugares de conforto que há
estão lotados – entre na fila para descansar – e os vazios se paga caro; então
você enche seu dia de atividades e trabalhos e baladas para não perceber isso,
e quando quiser descanso vai para casa ver TV, depois de brigar ou carrancudear
com o primeiro que cruzar seu caminho.
Essas
atividades e trabalhos, felizmente, podem ser muito reconfortantes – nessa vida
presa daqui nossa melhor escapatória é cultivar fortemente o intelecto,
investir nos estudos e no labor, mesmo. Por isso somos tão metidos a
inteligentes.
Atrevo-me a
dizer que é uma vida sem muitas emoções, com exceção dos desentendimentos com
os operadores de telemarketing, que na maior parte das vezes não merece mesmo
ouvir você puteando daquele jeito, apesar de possivelmente você ter razão nas
suas reclamações. Mas assim, vida movida, de soma de pequenos agitos, e de, às
vezes, pequenos prazeres no trabalho, uma felicidade mansa, sensação de
realização; um amor ou outro meio insosso e possessivo, ou um drama meio
doentio que abala mais pela dor do que pela paixão, ou, com sorte, um amor
sereno e calmo, do cansaço que o tempo traz.
A gente
aprende a dizer, sem nenhuma sutilidade, alguns bons palavrões para resistir ao
dia-a-dia dessa cidade, com exceção de alguns poucos recatados – que, diga-se
de passagem, após uma semana de convivência com a que vos fala, já aprende,
pelo menos, o divertimento de uma boa praguejada.
Às vezes
contamos com algumas surpresas previsíveis, como a chuva ou a mudança brusca de
tempo, algum bom evento cultural gratuito, um festival de culinária, um investimento
em intercâmbios ou mais uma nova burrada de algum político do PSDB – e que não
pensem que isso é uma crítica partidária, ela só é inevitável depois de tantos
anos dos caras governando São Paulo.
E que não
pensem que essas críticas todas são raivosas ou não me incluem. Vejo-me assim,
paulistana (e admito um forte desejo de seguir mudando, ainda que não
queira/precise que os outros o façam). E sei bem que temos, mais do que
necessário, motivos para viver assim, ser assim. Ô povo sofrido, viu. Porque
quem pensa que esse estilo de vida que levamos não é desgastante e sofrido é
porque não viveu o bastante aqui. Mas também temos nossas felicidades, somos
amados e amáveis. Necessários. E, seja como for, sempre vou lembrar com carinho
(um carinho até triste, às vezes) dessa cidade. Acho que essa esculturinha em
parafina vai ficar na estante.