Era a quinta noite que dormiam juntos, em dois meses. Ficavam dias e dias
sem se ver, que para ela pareciam toda uma vida: ela nascia, crescia e morria,
e voltava a nascer quando ele esboçava qualquer sinal de afeto.
Já era sua quinta vida. Sabia
que só tinha mais duas e temia por elas. Olhava para o teto um pouco atônita.
Não queria estar ali. Por que estava ali? Estava cansada daquele pouco amar,
daquela falta de entrega. Ele acariciava delicadamente seu corpo, causando
pequenos arrepios. Era um carinho que parecia sincero, mas nem por isso
continha amor. Era por isso que ela estava ali. Pelo arrepio. Porque tinha
ouvido em algum lugar que qualquer amor já é um descanso na loucura. Ainda que
duvidasse muito daquilo: sua falta de paz nesses dois meses era prova de que às
vezes o pequeno amar deixa a gente meio doida. Ela se sentia meio lunática. Por
que estava ali, mesmo? Tudo com ele parecia tão sincero, tão cheio de verdade,
tão... macio. Tão vazio, porque sem amor, sem imaginação. Tudo bem, ele tinha
acabado de amar, muito, outra. Sei lá se sobrava amor. Foi meio que intelecção
amorosa, por parte dela. Imagina, se entregar tão rápido assim pra alguém que
nem conhecia. Já tinham trocado os cinco fluidos sagrados, quatro que começam
com S e um que escorre pela face serpenteando – mas esse talvez só ela tivesse
vertido sobre seus ombros; ele não, acho que ele nunca tinha derramado uma
lágrima sequer. Ela lhe tinha entregado todos os segredos do corpo e nenhum da
alma. O que é uma grande mentira, porque a alma ia dissolvida nesses fluidos,
ele quem nunca reparou. Tudo bem, se sua função era ser parideira do eu inato
dele, já era uma função bastante nobre. Mas seguia esperando ansiosamente por
sua própria maiêutica.
Sempre se encontravam quando já
era noite, enquanto ela claramente preferia os ocasos, ou as alvoradas. Na
verdade ela preferia os dias inteiros, mas sabia que era pedir demais. Não
sabia quando tinha se tornado tão crepuscular, ou se era desde sempre. Era
difícil se estudar, assim. Por isso mantinha diários, para poder fazer estudos
menos unilaterais de si mesma. O crepúsculo era o vértice do mundo. Ela às vezes
era o vórtice, dela própria, dançando com Coriolis. Que lindo era um bom baile
cumbiero girando e girando...
Ele sambava. Ou pelo menos esses
eram os boatos. Ela tinha planos de estudar violão. Sua desenvoltura sempre
esteve nos sopros, com que tinha uma afinidade grandíssima. Tinha aprendido a
respirar com a flauta doce, a cantar seu coração tamborilando carinhosamente os
dedos no corpo de madeira dos instrumentos, e gostava da sensação dormente em
sua boca depois de horas tocando. Mas agora... Já fazia uns tempos que seu ser
clamava pelas cordas. Durante muito tempo esperou por um violonista que a
acompanhasse na base. Ouvia alguém tocando a Bachianinha 1 e sentia seu corpo
estremecer esperançoso. Em algum momento de sua vida, porém, decidiu que tudo
aquilo que admirasse muito em alguém, a ponto de querer a pessoa para si,
aprenderia a fazer por si só. Seria seu próprio eu. Também gostava de batucar
de vez em quando, embora reconhecesse sua fraqueza para manter ritmos. Ele
tocava pandeiro. Tinha pinta de quem tocava bem, porque era organizado e
comedido em tudo o que fazia. Devia ser preciso como um metrônomo.
Seguia olhando para o teto,
enquanto sentia o coração manso dele batendo em sua barriga. Ele, de bruços,
apoiava sua cabeça em seu corpo como alguém que quer ouvir o que está
acontecendo lá dentro, envolvido pelo carinho delicado e firme dela. Sentiam-se
assim, como quem espera um filho. Por um momento hesitou: qual dos corações era
esse que pulsava ali em sua barriga? Compasso ternário, como o das músicas
campesinas que tinha aprendido a dançar.
O nascer do sol naquela parte de
cidade era meio bobo. Sem cor, sem sal. Só prédio. Aquele ventinho que entrava
pela fresta da janela a vinha chamar para sua realidade. Faltava cheiro de
terra molhada, há muito.
Ela o apertou forte contra o
peito, sentindo sua pele macia, aquele cheiro leve de banho, suor e sexo, sua
morenice, sua voz suave. O gosto não sabia muito bem, foi pouco tempo para
descobrir. Engraçado como alguém tão terno podia, sem querer, ferir agudo como
uma navalha. Feria no peito fazendo sangrar. Mas se não é pra sambar junto,
então o sangue vai para pachamama.
Beijou-lhe a testa, como quem
diz Bonito, quando você tiver espaço para
amor, eu volto, juro que volto. Fez um carinho ali onde despontava uma
entrada e alguns cabelos brancos. Deslizou suavemente da cama como um gato,
vestiu-se, enquanto ele olhava curioso, e partiu. Verteu uma lágrima para o
santo, o resto tragou como cachaça. E anestesiada rumou para o sul.
Filho das quartas-feiras, da disciplina Educação e Cultura II: imaginário e processos simbólicos (com o Marcos Ferreira, na FEUSP), da Clarice Lispector, de Mercúrio, da Lua, da vida.