domingo, 7 de junho de 2015

Sobre homens e chapéus

Eu queria escrever alguma história talvez mais filosófica ou imaginativa. Até tentei. Mas a verdade é que o que tenho aqui é uma história de amor – um drama? De um homem por seu chapéu.
Nunca fui muito afeito por acessórios, e nunca havia entendido a verdadeira utilidade de um chapéu. Para mim pareciam mera decoração. Não que achasse isso negativo, sabia da graça que uma boa cartola ou um guarda-chuva podiam trazer. Mas até então eram assim bonitos como as flores campestres: observo, mas não as tomo.
Até aquele fatídico dia nublado e xexelento, quando caminhava meio pensativo e torpe. Já nem sabia mais o que me preocupava, mas há três noites não podia dormir. Entrei por qualquer viela ladrilhada deixando meus pensamentos me guiarem, e então me deparei com uma pequena igreja e seu cemitério. Passeei um pouco entre os mausoléus, imaginando como teria sido a vida daquela gente.
Tem dias que só encontro minha paz nos mortos. É como se, estando com eles nada mais fosse tão urgente.
Um pequeno raio de sol anunciou que era tempo de seguir caminhada.
Uma das coisas que mais aprecio na vida é observar os artistas de rua. Muitas vezes vale mais do que o mais renomado concerto da cidade. E ali, naquela esquina da Marienplatz, encontrei. Foi como se a paz nunca tivesse me deixado. Aquele sanfoneiro tocava Bach de um jeito incrível, e em sua cabeça, o chapéu com mais personalidade que já vi na vida. Não era essa coisa typisch bayrisch que encontro sempre. No seu intervalo o convidei para uma cerveja - o sanfoneiro, não o chapéu. Fiquei curioso sobre suas histórias e a origem daquele belo panamá-marrom que trajava. Contou-me que havia trocado por seu clássico verde-com-pena quando esteve no Brasil, em uma roda de samba. Achei curioso um amante de Bach ter se misturado tão contente com os cavaquinhos e pandeiros. Ele me disse: As bachianinhas me encaminharam.
Resolvi propor uma pequena aposta alcoólica em troca daquele chapéu, e claro que ganhei. Nunca se deve duvidar da minha capacidade de beber cerveja, principalmente Franziskaners.
Desde então o chapéu virou meu companheiro inseparável. Junto com ele veio o samba. Cartola, Noel, Adoniran, Clementina de Jesus, Bezerra. E daí que minha relação com ele deixou de ser a de acessório, e passou mesmo a ser de amizade, de complemento e contraponto. Eu era outro quando o levava, era alguém muito mais interessante.
Nos momentos de chapéu conheci toda a gente peculiar que antes se escondia nos rincões de Munique. Desde velhinhos beberrões entusiasmados até crianças de pensamento profundamente filosófico. Arranjei-me um par de encontros a partir de olhares curiosos. Desentoquei o violão e voltei a arranhar alguns acordes sofisticados, mas mal tocados. Acho que isso tinha lá seu charme... Conheci viajantes e viajei mais também, com mais coragem pra ser outro desses seres musicais rueiros.
E voltando de uma dessas viagens que o drama se instaurou. A começar por uma mensagem de um velho amor (Quanto tempo! Estou em Munique, nos encontramos?). Quanto tempo. Claro, você nunca mais me respondeu. Nem consegui ficar nervoso, impulsivamente respondi "sim, hoje, 17h, Hauptbanhof". E depois disso toda a ansiedade do mundo. Para melhorar era tempo de greve da Deutsch Bahn, trem lotado, paradas longas, viagem inquieta. Era como se estivesse flutuando em qualquer mundo paralelo e aflitivo.
Com meia hora de atraso, desci esbaforido do trem. Olhei ao redor e nada. Ou melhor, um amontoado de gente buscando as conexões possíveis para outras cidades. De repente me dei conta. O chapéu. Scheiße, o chapéu! Ficou no trem! 
Ele ainda estava ali parado. Corri, subi no vagão em que viajei e busquei aflitamente. Nada. Um funcionário me avisou rispidamente que o trem estava sendo fechado e que não havia nada ali.
... ele. 
Que perda maior do que ele?
Fui para minha casa sem nem olhar para os lados. Era como se já não tivesse um pedaço de mim, talvez a melhor parte de mim. Era como a morte de um grande amigo. E como numa ocasião dessas, os dias que seguiram foram de luto. Eu sei o quanto isso soa estúpido, e tentava mesmo me iludir de que o vazio que sentia era por outro motivo - talvez aquele amor que afinal não encontrei. Mas, a verdade é que me tornei um homem afeito por meu chapéu, como alguém o pode ser por um cão. E eles são insubstituíveis.

Os dias que passaram foram de marasmo e trabalho alienado. Dias de gente normal e de bem. Vazios. Acompanhados às vezes de uísque e jazz, numa tentativa forçada de contemplação.
Já não era nem mais tristeza o que sentia. Era normalidade. Era esse intento de se enquadrar (e se eu casasse, comprasse minha casa, buscasse um emprego mais estável e promissor, fizesse aquela especialização que nem me interessa, mas seria boa para meu currículo?). E nada mais sufocante do que a fôrma social.
Resolvi então tirar um dia em Salzburg. Nada tão longe nem tão novo, mas pelo menos outros ares, outro país, um movimento agonizante em direção à superação.

Caminhava distraído e irritadiço pela cidade. Queria desfrutar do momento, mas a sensação eterna de algo pendente (preciso ir ao banco, tô sem leite em casa, etc. etc.) me incomodava como uma alergia no traseiro.
Depois de um tempo andando sem rumo pelo centro histórico, comecei aos poucos a desanuviar. Achava graça nos blocos de turistas chineses todos tão sorridentes e fotografantes pelas ruas. Subi à Fortaleza de Hohensalzburg, e lá de cima senti o pequeno maravilhamento de ver toda a cidade. A contemplação veio em seguida, com o soar dos sinos das 18 horas. Foi como se cada harmônico viesse massagear meus neurônios dizendo: relaxe. Passaram uns bons minutos em que me mantive nesse estado de observar a paisagem e ouvir a cadência decrescente dos sinos. Estava livre, sei lá do quê, mas estava.
Um cachorro amoroso e bastante precipitado balançando em minha perna me trouxe de volta a essa dimensão, estabelecendo a hora de seguir caminhada. Desci uma escadaria e me deixei levar até a Franziskaner Kirche. Entrei. Gosto de entrar em templos para pensar - neles, se uma pessoa senta e fica olhando atônita para o nada, isso não é considerado tão estranho. Montes de velas enfileiradas. Despertou minha curiosidade que só duas chamas balançassem felizes, como se conversassem. Não sei quantos minutos me detive nessa quase meditação, mas sei que ali consegui deixar meu chapéu. Ali, não sei bem por que, isso tudo deixou de ser importante. Não que tivesse passado a considerá-lo superficial, nunca. Mas acho que o (me) libertei. O amor só dura em liberdade.
Saí com um sorriso de canto de boca, daqueles de quem sabe das coisas boas da vida, daqueles de mãe que vê filho crescendo. Era como se esse tempo todo estivesse com uma viseira, forçado a não ver a amplidão da vida. Sinto-me um verdadeiro panaca quando saio desses momentos de dor infantil e volto à bonita realidade. Mas afinal, acho que isso é o que torna a realidade mais bonita.
Logo que dobrei a esquina tive a felicidade de me deparar com um titereiro balançando uma caveira ao som de Elvis. Nada tão inovador, mas tinha ginga. Vagarosamente percorri o olho pela cena, e finalmente me atentei ao espírito por trás da marionete. Que bela surpresa me deparar com aquele chapéu coco azul marinho! Eu o veria talvez como de mau gosto em outro contexto, mas ele ornava harmoniosamente o rosto anguloso e barbado daquele jovem moreno que dançava quase tão feliz quanto o próprio boneco. Talvez fosse tempo de um novo amor...
Saquei um par de cigarros do bolso e com a velha desculpa do "você tem fogo?" o convidei para um café. O chapéu, dessa vez.


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