sábado, 14 de abril de 2012

Composição


Acordávamos cedo e líamos o horóscopo, eu e você, você e eu, numa incessante busca por brechas por onde entrasse o ar, aquele ar fresco e quente, que traz a sensação de que o dia terminou bem.  Terminou com alguém sorrindo ao pé da sua orelha enquanto assistem a um filme qualquer, abraçados. E às vezes até apareciam brechas nas frases sem sentido do horóscopo, e a gente esperava. E nada acontecia.
Enquanto nada acontecia, a gente acontecia devagar, você no violão, eu na flauta ou voz. Acontecíamos muito bem, numa sintonia difícil de encontrar, numa fluidez às vezes errada, mas sem travas, sem feiuras.  Enquanto líamos o horóscopo e discutíamos a política local e nossa história de vida, íamos dançando um samba mansinho, fazendo samba e amor até mais tarde. E sempre no que talvez eles chamassem de clímax desse baile tão bonito, a gente se preocupava com o sono de amanhã, e aos passos de Beirut íamos a nossos respectivos quartos, esperando o dia raiar para ler o próximo horóscopo.
E o dia raiava em samba, não perdíamos o compasso sem certa formosura, certa malícia do erro, aquele erro que é mesmo pra provocar quem estiver atento e desconcertar quem estivesse dançando. Embaixo do assoalho escrevíamos nossa história, com trocas de carinho e pequenas confissões, daquele jeito fechado, reservado. Mesclando o sol forte, a flojera do calor, o vento fresco da noite, as noites frias nas festas, a busca, em conjunto, pelas predições do horóscopo, enquanto a música eletrônica batia forte. E no fim nos divertíamos dançando entre nós, esquecendo de todo o cigarro e álcool dos outros. Seu cabelo caindo nos olhos fechados. Sorríamos a beça, voltávamos pelo meio da rua, entrávamos em casa aos passos de uma boa cumbia, e nos despedíamos nas portas dos quartos.
A certa altura a casa ficou vazia. Seus acordes menores e diminutos acompanhavam o lamento da minha flauta, dois moços se estendiam em nossas camas, escutando calmamente nosso lamento. A flojera não era mais só do calor, era também da dor do adeus. Íamos diminuindo a cada dia, e nos diminuíamos com isso.
Em um dado momento, talvez por toda a luz a mais que parecia entrar pelas janelas, e pela amplidão que de repente os quartos ganharam, pelo vazio que deixaram todos aqueles que compartilhavam nossa história, ou que inevitavelmente iam deixar, nesse vácuo iluminado nos olhamos fundo. Nós éramos a brecha dos nossos horóscopos. E quantos filmes não vimos, todos, juntos? Quantas risadas, quantos carinhos...
No dia que você partiu trocamos cartas e lembranças. A casa seguiu se esvaziando depois disso. E a cada dia sua ausência foi levando os acordes, um harmônico a cada dia, até que a música acabou.
A gente encontra música em muitos lugares, muitas músicas. A música eletrônica continua batendo forte, a cumbia continua regando os cafés-da-manhã de algumas pessoas na cozinha, o samba está sempre por aí dobrando as esquinas, tem um Beirut ou outro tocando no reprodutor de alguns, seguido de Los Hermanos, possivelmente. Sua música continua, aí. A minha continua aqui. Pergunto-me se elas se comunicam de longe. Que bonito seria nos juntarmos e, somando nossas notas, ouvir o contraponto do nosso amor sutil, completando, por fim, nossa composição.

2 comentários:

  1. É engraçado como tanta coisa no meu dia-a-dia continua me lembrando você.

    Acho que vai ser assim pra sempre ♥

    I.

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    1. Tem uma havaiana trocada que tá aqui pra exercer essa função.
      Eu espero que com os anos tenhamos muitas outras memórias de muitos outros lugares pra povoar nosso cotidiano. Salpicar de carinho.

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